Vi o esquecimento a que a linha e as pessoas que vivem
nas povoações circundantes estão condenadas. Antes de mim, só se
lembravam do “Jorginho e da Rosinha”, os realizadores do
doc. “Pare, Escute e Olhe”.
Artigo de Diana Neves.
Em Agosto de 2008, foi desactivada a
centenária linha ferroviária do Tua. Há cerca de um mês tive
conhecimento de que a linha já tinha começado a ser destruída para
efeitos da construção da barragem de Foz-Tua, uma das mais
controversas do Plano Nacional de Barragens de Elevado Potencial
Hidroeléctrico.
Assim decidi ir percorrê-la a pé de modo a
testemunhar o crime ambiental e social que está prestes a condenar
toda a região.
Através desta viagem vi o esquecimento
a que a linha e as pessoas que vivem nas povoações circundantes
estão condenadas. Raramente avistava alguém e quando o fazia,
sentia-me uma extraterrestre. Por andar a percorrer 50 km de ferrovia
de mochila às costas, por mostrar interesse em conhecer uma região
tão desertificada e as suas pessoas, que em tudo parecem moldadas
pela paisagem que as rodeia.
Antes de mim, só se lembravam do
“Jorginho e da Rosinha” os realizadores Jorge Pelicano e Rosa
Silva do documentário “Pare, Escute e Olhe”, que durante dois
anos investigaram sobre aquele lugar e as suas pessoas, e pelos quais
todos os habitantes com que me cruzei nutriam grande consideração e
carinho. Por terem gritado a realidade de “todos os Tuas” para
fora do silêncio da desertificação.
Estas pessoas são as que vivem entre o
rio e a sua horta ou vinha. Aquelas que nos oferecem tudo o que têm:
o seu tecto, o seu pão, o seu vinho, perante a dureza da caminhada
ou meramente as suas pantufas e salamandra perante os meus pés
encharcados da chuva e gelo exteriores.
São casais de idosos com os
filhos emigrados em França e na Suíça, são adultos que tiveram de
ir procurar trabalho para as capitais de distrito apesar das poucas
vias de comunicação, são jovens que trabalham na vinha da família
na época baixa e vão para a apanha do morango para França na época
alta. Pessoas que me receberam com o seu calor, o único que resta
depois do abandono das sucessivas promessas dos governos em
investimento no interior.
Quanto à barragem, ninguém sabe ao
certo até onde chegará, o que sabem chega-lhes pelas telefonias ou
pela televisão no café central. Uns dizem até Ribeirinha (aldeia
central do documentário “Pare, Escute e Olhe”), outros dizem que
irá só até Brunheda (onde ocorreu o último acidente).
Na verdade a partir de Brunheda até à
foz do Tua (o chamado Baixo Tua), por onde o rio começa a serpentear
entre profundas e espectaculares gargantas rochosas, deixa-se de
avistar povoados e os que existem perto da linha foram abandonados (o
caso de S. Lourenço, a 16 km da foz).
Aqui, após um dia sem ver
gente, avistei a Protecção Civil que seguia pela linha com
instrumentação, mais à frente umas geólogas dizendo que a linha
estava cortada e que não podia continuar a caminhar, que se faziam
ensaios de risco nas escarpas com explosivos. Perguntei pela
barragem, disseram que ficaria pela quota 170 m , exactamente a da
linha.
Eu tinha feito 400 km desde Lisboa e
tinha um objectivo: ver com os meus olhos um lugar de beleza
inigualável antes do início de um impensável crime ambiental a que
este governo deu luz verde. Embebida pela paisagem única de um
traçado que nunca cheguei a fazer de comboio, prossegui para além
da destruição dos carris e das retro-escavadoras que impediam o
caminho.
Estava a 3 km da foz do rio Tua e a paisagem não podia ser
mais encantadora, já se avistavam as vinhas ordenadas do Douro por
entre o enquadramento abrupto das gargantas do Tua.
Infelizmente tudo
isto já começou a ser transformado no cenário de obra que precede
o que virá a ser uma muralha de betão. Uma muralha que não se
justifica.
E não se justifica por inúmeros
artigos e noticias já publicados aqui.
- Porque a barragem Foz-Tua contribuirá apenas em 1% para o aumento da
produção de electricidade (terá uma potência instalada de 324 MW);
- Porque um reforço da barragem do
Picote, custando apenas 1/3 do investimento da barragem Foz-Tua,
permitiria atingir 75% da potência prevista para a mesma;
- Porque que se o governo se empenhasse
comprometidamente nas questões da energia e sustentabilidade perceberia
que as políticas de uso eficiente de energia permitiriam baixar a
procura de energia e por isso não justificariam tão grande investimento
para a construção de mais uma barragem;
- Porque um vale de beleza
inclassificável e uma linha de importantíssimo interesse público
ficarão debaixo de água em prol de uma barragem sem futuro;
- Porque a falácia do desenvolvimento
turístico é facilmente desconstruída e ao que parece não se aprendeu
nada com o Alqueva - o aval está dado para outras barragens do PNBEPH
igualmente contestadas como a do Sabor e do Fridão;
- Porque o que permite que tão grande
crime ambiental seja cometido é a eterna concessão de questões
ambientais e energéticas ao interesse e negócio privado, com a
crescente descapitalização de empresas estatais, como a EDP;
- Porque investir na ferrovia não é
atractivo para os grandes interesses económicos mesmo quando isso
significa cortar as principais vias de comunicação com o interior
(veja-se que o investimento nas estradas de Lisboa e Porto em 1 ano
iguala investimento na ferrovia em todo o país nos últimos 4 anos).
Apontamento histórico:
Desde a sua construção em 1887, esta
linha de 134km que tem o seu início em Bragança, passando por Mirandela
e acabando na foz do rio Tua (no Douro), sempre representou uma via
crucial de comunicação entre o Norte interior e o litoral (ligação ao
Porto através da linha do Douro).
A sua história conturbada inclui desde roubos de carris (caso Carril
Dourado pelo qual o empresário Manuel Godinho foi acusado),
desactivação “silenciosa” de troços da linha (em 1992, o troço entre
Bragança e Mirandela), e quatro acidentes entre 2007 e 2008
(curiosamente após a decisão definitiva da construção da barragem
Foz-Tua), levando ao encerramento do troço Mirandela – Foz-Tua em
Agosto de 2008.
Actualmente apenas cerca de 18 km são explorados pelo Metro de Mirandela entre Carvalhais e Cachão. (cronologia mais detalhada aqui) e a restante linha a sul do Cachão encontra-se ameaçada pela construção da Barragem.
Movimentos pelo Tua:
Movimento Cívico pela Linha do Tua
Petição pela Linha do Tua
Blogue de Divulgação da Linha do Tua
Artigo de Diana Neves
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