“A casa é de facto, o lugar mais
perigoso da sociedade moderna. Em termos estatísticos, seja qual for
o sexo ou a idade, uma pessoa estará mais sujeita à violência em
casa do que numa rua à noite” Anthony Giddens
O problema da violência doméstica não
é um fenómeno novo, apesar disso só começou a ganhar visibilidade
a partir dos anos 70 por força e iniciativa das organizações a
favor dos direitos das mulheres, principalmente feministas, que
desenvolviam trabalho em casas abrigo para mulheres vítimas de
violência, tornando-se assim um problema público digno de atenção.
Esta maior visibilidade não pode,
contudo, dissociar-se da redefinição do papel das mulheres que se
tem vindo a sentir nos últimos 60 anos. Estas conquistaram um
conjunto de direitos que antes lhes eram vedados, alcançaram
determinadas posições sociais que eram predominantemente
masculinas, surgiram até algumas mudanças nos costumes que
começaram a repudiar determinados actos que até aí eram
considerados normais, como a violência na família e aumentaram as
denúncias destes actos que antes ficariam enclausurados no universo
fechado da família. Assim, por exemplo, num documento de 1998, a
APAV dava conta de que o fenómeno de violência contra as mulheres
“que durante muito tempo permaneceu silenciado no interior das
famílias está a ser cada vez mais denunciado e a ganhar
visibilidade, começando a quebrar-se a cumplicidade pública e
privada com que temos olhado para este problema”.
Num passado não muito distante, a
violência conjugal estava inscrita nos códigos de conduta como algo
normal. A mulher tinha de prestar obediência ao pai e depois ao
marido. Era esta a visão dominante, sobre a mulher, que encontrava
tolerância e legitimação na própria legislação, uma vez que não
existia lei alguma que proibisse um homem de bater na mulher.
Actualmente, homem e mulher são iguais
perante a lei. No entanto, esta legalidade nem sempre é reconhecida
como legítima uma vez que as leis não mudam costumes nem valores e
a violência sobre as mulheres continua, em geral, enraizada na
cultura dos povos.
A alteração das práticas existe, mas
é lenta: as mulheres não conhecem nem usufruem dos direitos que têm
ao seu alcance de forma a não continuarem submissas a situações de
injustiça; a nível jurídico verifica-se a grande discrepância
entre a lei e a sua aplicação; e a polícia continua
maioritariamente a remeter os casos de violência doméstica para
situações do foro privado e familiar. De facto, foi o remeter este
tipo de casos para o domínio privado que, durante muito tempo,
afastou a violência sobre as mulheres do campo legal e de qualquer
influência das instituições. Hoje em dia estas actuações são
consideradas indispensáveis.
Em Portugal, só após o 25 de Abril de
1974 é que o tema da violência doméstica começa a emergir no
espaço público quando alguns grupos de mulheres invocam
determinadas problemáticas relacionadas com as mulheres,
nomeadamente as desigualdades de oportunidades em função do género.
No entanto, e ao contrário do que acontece noutros países, só a
partir dos anos 80 e com maior proeminência nos anos 90, o tema da
violência doméstica conquista um lugar no espaço público e na
política.
A mudança social não se deu mais cedo
em Portugal pois “as mulheres portuguesas não terão sido
influenciadas pelos movimentos feministas dos outros países que, nos
anos 60 e 70, começaram a fazer emergir temas tão obscuros como a
violência sexual contra as mulheres e as crianças e, com estes, a
violência doméstica” (APAV). Nestas décadas, Portugal vivia
ainda sob um regime ditatorial, e nos anos 70 a construção da
democracia exigia outras preocupações e o interesse por problemas
sociais mais visíveis.
A Comissão para a Igualdade e para os
Direitos das Mulheres (CIDM), organismo público na dependência do
Conselho de Ministros, foi criada pelo Decreto-Lei n.º 166/91, de 9
de Maio. Este organismo teve um papel importante na colocação do
tema na opinião pública, desenvolvendo publicações informativas e
um serviço de atendimento a mulheres em Lisboa e no Porto. Esta
comissão é assim uma primeira expressão da preocupação do Estado
português em relação às questões das mulheres.
Na Conferência Mundial sobre as
Mulheres, realizada em Pequim em 1995, foi adoptada uma Plataforma de
Acção pelos Governos assumindo “o compromisso de implementar todo
um conjunto de medidas destinadas a prevenir e eliminar a violência
contra as mulheres” (CIDM). No seguimento desta conferência foi
lançado o Plano Nacional Contra a Violência Doméstica para os anos
de 1999-2002, seguindo-se o II Plano (2003-2006) e o III Plano
(2007-2010). Estes planos consistem num modelo de orientação
política para analisar o fenómeno, apontando para “uma
consolidação de uma política de prevenção e combate à violência
doméstica, através da promoção de uma cultura para a cidadania e
para a igualdade, do reforço de campanhas de informação e de
formação, e do apoio e acolhimento das vítimas numa lógica de
reinserção e autonomia” (CIDM).
Nestes planos é apresentado um
conjunto de medidas no sentido de combater esta violência. Há, no
entanto, que salientar algumas dificuldades na sua aplicação
prática. Por exemplo, das medidas destaca-se o afastamento do
agressor da casa de residência da vítima; habitualmente, contudo,
acontece o contrário: é a vítima que sai da residência, sem que
até hoje esta medida tenha sido implementada. Assim, apesar destes
Planos enquadrarem a actividade dos diferentes operadores com
intervenção directa junto da vítima, salientam-se as inúmeras
dificuldades na aplicação das disposições legislativas,
regulamentares e administrativas existentes em Portugal.
A nível jurídico, a violência
doméstica só começou a fazer parte das preocupações da
legislação portuguesa no Código Penal de 1982, através da
consagração do crime de maus-tratos ou sobrecarga de menores e
subordinados ou entre cônjuges, previsto e punido pelo seu artigo
152.º.
No entanto, a intervenção do Estado
português fez-se apenas pela via legislativa punitiva, ou seja,
criminaliza determinadas condutas no meio doméstico consideradas
violentas. É inexistente, em Portugal, qualquer mecanismo de
protecção à vítima, similar às civil protection orders
anglo-saxónicas. Esta é uma ordem judicial que tem como intenção
obrigar um indivíduo, que tenha cometido um acto violento, a
abster-se de realizar novos actos de violência contra a pessoa à
qual foi concedida a ordem
A 27 de Maio de 2000 foi levada a cabo
uma alteração no Artigo 152 do Código Penal, por iniciativa do
Bloco de Esquerda, pela qual a violência doméstica passou a ser
crime público. Isto significa que a violência doméstica passou a
ser considerada um crime de maior gravidade uma vez que põe em causa
a violação dos valores sociais mais relevantes. Assim, a denúncia
do crime de violência doméstica já não obriga a uma declaração
de vontade de denúncia da vítima, passando antes a ser obrigatória
para as entidades policiais e para funcionários que nos seus
serviços tenham conhecimento destes crimes e facultativa para outras
pessoas.
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