Em entrevista ao esquerda.net, a deputada Catarina Martins fala
do Roteiro sobre Políticas Culturais que o Bloco promove até Março e
afirma que pelas contas do governo “nem em 2012 se chegará sequer a
0,6% do Orçamento de Estado” para a Cultura.
Nos primeiros meses do ano vais percorrer o país numa série de
encontros sobre políticas culturais. Qual é o objectivo desta
iniciativa?
Portugal tem neste momento uma rede de equipamentos culturais espalhada
por todo o país; bibliotecas, museus, teatros. Mas esta é apenas uma
rede de edifícios a que não corresponde qualquer visão política
estruturada para o sector ou mesmo qualquer investimento. Temos muitas
populações aparentemente servidas por equipamentos culturais mas que
efectivamente não têm qualquer acesso aos conteúdos artísticos e
culturais, porque os equipamentos não têm programa, financiamento,
equipa…
Simultaneamente temos um poder político que anuncia novos projectos, e
novos modelos de gestão de equipamentos, sem conhecer o que existe nem
garantir o seu funcionamento, sem traçar qualquer plano estratégico e
tentando descartar as suas responsabilidades no sector cultural com um
discurso que substitui arte e cultura por indústrias criativas; ou seja
um sector dependente do mercado e em que é natural a substituição do
(muito insuficiente) mecenato existente por simples estratégias de
marketing.
O Bloco de Esquerda tem uma visão de Cultura enquanto serviço público e
propõe-se apresentar iniciativas legislativas de acordo com esta visão;
políticas que garantam o direito constitucional da população à fruição
cultural e que criem as condições para o desenvolvimento sustentado da
arte e da cultura em todo o território. A política de eventos e de
inaugurações tem de ser substituída por medidas estruturantes.
Esta iniciativa pretende recolher os contributos dos agentes culturais
de todo o país, para produzir iniciativas legislativas que respondam
aos problemas e à diversidade de situações no terreno. Estes encontros
são também uma oportunidade para Grupo Parlamentar e autarcas do Bloco
de Esquerda trabalharem em conjunto sobre questões de política
cultural, já que este é um sector em que o papel das autarquias é
fundamental.
Começaste este roteiro pelo Porto. Quais foram as principais
preocupações que recolheste dos agentes culturais no distrito que te
elegeu?
O encontro do Porto correu muito bem. Foi muito participado, tanto por
agentes culturais do distrito do Porto como do distrito de Aveiro.
Estiveram presentes os responsáveis de equipamentos culturais, tanto de
carácter nacional como municipal, bem como directores de companhias
independentes, profissionais freelancer e representantes de associações
do sector.
Foi consensual a necessidade de uma política estruturada, de programas
de financiamento plurianual, de clarificação das responsabilidades do
Estado e de aprofundamento da autonomia dos equipamentos. Em relação
aos teatros municipais foi muito reivindicada a criação de uma
verdadeira rede e de instrumentos legislativos que façam exigências ao
nível das equipas, dos projectos e da transparência.
É notória uma grande preocupação com os “artistas em fuga”, que
desistem de trabalhar no distrito onde se formaram – o Porto tem muitas
escolas artísticas e muito conceituadas - por falta de condições para
desenvolverem o seu trabalho. Foram ainda temas o desaproveitamento da
capacidade de produção audiovisual do Porto, a falta de estruturas de
proximidade – como a biblioteca de bairro – e de conteúdos culturais na
televisão, bem como o desaparecimento da arte dos currículos escolares;
tudo factores que afastam a população de uma vivência quotidiana da
arte e da cultura e impedem o desenvolvimento do sector cultural.
Muitos dos presentes exprimiram ainda preocupação com a falta de
conhecimento do que existe por parte Ministério da Cultura, que lança
projectos sem levantamento do terreno e sem qualquer plano estratégico,
bem como pela adopção pelo Estado do discurso falacioso das indústrias
criativas que está a servir de pretexto para abandonar a cultura à
lógica de mercado.
O Orçamento de Estado para a Cultura está longe do 1% que o Bloco
reclamou na campanha eleitoral e até José Sócrates reconheceu que a
legislatura anterior foi negativa nesta área. Pelo que vês nestes
primeiros meses, acreditas que o governo quer aproveitar a segunda
oportunidade?
A denúncia do desinvestimento do Estado, central e local, foi uma
constante nas intervenções da sessão de dia 10. Ficámos a saber, por
exemplo, que o Teatro Nacional São João tem o mesmo orçamento há dez
anos (e note-se que tem a responsabilidade de programar mais espaços).
João Fernandes, director do Museu de Serralves, chamou a atenção para o
facto de a grande fatia do orçamento do Ministério da Cultura para os
Museus ficar para o Museus de Serralves e para a Colecção Berardo,
sendo que mesmo assim o Museu de Serralves tem um orçamento muito mais
baixo que os seus congéneres internacionais. Os responsáveis dos
teatros municipais assumem que trabalham com verbas muito abaixo do que
seria minimamente aceitável e sempre sem qualquer certeza quanto ao
futuro imediato. Existem bibliotecas que estão há anos sem comprar
qualquer livro. A situação é calamitosa.
Há 5 anos, na campanha para a legislatura passada, Sócrates prometeu 1%
do Orçamento de Estado para o Ministério da Cultura. Mas, como todos
sabemos, o orçamento nunca subiu, só desceu. Tivemos mesmo um Ministro
que irresponsavelmente afirmou que faria mais com menos. Com menos,
fez-se obviamente menos. E até Sócrates acabou por admiti-lo no final
da legislatura. E avançou para nova campanha com nova promessa, ainda
que desta vez sem se comprometer com qualquer meta.
A nova Ministra da Cultura começou bem melhor a sua intervenção
pública, afirmando que com menos não se fazia mais e que obviamente o
orçamento do seu ministério seria reforçado. Mas este optimismo cedo
deu lugar a um discurso que infelizmente já todos conhecemos; a crise
não permite mais investimento e, afirmou a Ministra na audição da
Comissão Parlamentar, duplicar o orçamento em 4 anos é já um sonho. Ou
seja, nem em 2012 se chegará sequer a 0,6% do OE!
Mas, infelizmente, o susto não pára aqui. A Ministra da Cultura afirma
que quer novos modelos de gestão e parece depositar uma grande
confiança na iniciativa privada. A pergunta repete-se: terá feito uma
análise do que já existe?
Voltando ao encontro que fizemos no Teatro Carlos Alberto, percebemos
bem que o TNSJ ficou prejudicado com o modelo de entidade pública
empresarial. E também parece claro que o modelo de Fundação com
privados, que resultou com Serralves, nasce de uma particular
conjuntura que não se conseguirá repetir, até porque os 150 fundadores
privados da fundação dificilmente financiarão mais projectos. E
dificilmente se encontrarão em Portugal empresas fora daquele grupo com
vocação mecenática.
Na verdade, o mecenato em Portugal não existe de forma estruturada;
algumas empresas investem em alguns grandes projectos do Estado, cada
vez mais numa perspectiva de investimento em marketing e de uma forma
absolutamente subsidiária. Voltando ao exemplo de Serralves, os 150
mecenas contribuem cada um com uma verba pequena que, globalmente, não
ultrapassa a contribuição do Estado (que é responsável por praticamente
50% do orçamento da fundação).
Perceber que nos próximos anos o Ministério da Cultura tenciona lançar
mais projectos, com um orçamento parecido com o que tem tido e
confiante que serão os privados a assumir a responsabilidade de
financiamento do sector, é muito preocupante.
Os profissionais do espectáculo esperaram até 2008 para verem
reconhecido um Estatuto laboral, para muitos ainda insatisfatório.
Podemos contar com iniciativas legislativas do Bloco neste domínio?
A Lei 4/2008 não reconhece na verdade qualquer estatuto laboral;
limita-se a permitir aos empregadores contratar projecto a projecto,
criando um regime excepcional de ausência de quaisquer limites para a
contratação a prazo neste sector. Ora isto não responde em nada aos
problemas dos profissionais.
Continuamos sem protecção social na intermitência e sem certificação
profissional. Para os trabalhadores, que continuam em muitos casos
presos aos falsos recibos verdes, nada se resolveu. A situação, pelo
contrário, agravou-se.
A Ministra da Cultura disse na Comissão Parlamentar que este era um
assunto prioritário, mas mais uma vez o discurso é negado em poucos
minutos; o Ministério fará um estudo (mais um!) sobre esta matéria e
espera daqui a 4 anos criar um estatuto profissional!
O Bloco de Esquerda, por seu lado, já apresentou um projecto lei sobre
protecção social para os profissionais do espectáculo e do audiovisual
e um outro para dar resposta ao “desgaste rápido” na área do bailado
clássico e contemporâneo.
Mas não ficaremos por aqui; queremos ainda voltar a apresentar
propostas relativas ao regime de contrato de trabalho, à semelhança do
que fizemos em anteriores legislaturas, bem como aprofundar as
respostas ao nível da protecção social e fazer avançar a certificação
profissional. Criámos mesmo um fórum online
que será uma importante ferramenta para a elaboração das iniciativas
legislativas neste domínio; é um espaço de troca de informação para o
qual convidamos todos a dar o seu contributo.
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