Violencia Conjugal
31-Out-2011
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“A casa é de facto, o lugar mais perigoso da sociedade moderna. Em termos estatísticos, seja qual for o sexo ou a idade, uma pessoa estará mais sujeita à violência em casa do que numa rua à noite” Anthony Giddens

O problema da violência doméstica não é um fenómeno novo, apesar disso só começou a ganhar visibilidade a partir dos anos 70 por força e iniciativa das organizações a favor dos direitos das mulheres, principalmente feministas, que desenvolviam trabalho em casas abrigo para mulheres vítimas de violência, tornando-se assim um problema público digno de atenção.

Esta maior visibilidade não pode, contudo, dissociar-se da redefinição do papel das mulheres que se tem vindo a sentir nos últimos 60 anos. Estas conquistaram um conjunto de direitos que antes lhes eram vedados, alcançaram determinadas posições sociais que eram predominantemente masculinas, surgiram até algumas mudanças nos costumes que começaram a repudiar determinados actos que até aí eram considerados normais, como a violência na família e aumentaram as denúncias destes actos que antes ficariam enclausurados no universo fechado da família. Assim, por exemplo, num documento de 1998, a APAV dava conta de que o fenómeno de violência contra as mulheres “que durante muito tempo permaneceu silenciado no interior das famílias está a ser cada vez mais denunciado e a ganhar visibilidade, começando a quebrar-se a cumplicidade pública e privada com que temos olhado para este problema”.

Num passado não muito distante, a violência conjugal estava inscrita nos códigos de conduta como algo normal. A mulher tinha de prestar obediência ao pai e depois ao marido. Era esta a visão dominante, sobre a mulher, que encontrava tolerância e legitimação na própria legislação, uma vez que não existia lei alguma que proibisse um homem de bater na mulher.

Actualmente, homem e mulher são iguais perante a lei. No entanto, esta legalidade nem sempre é reconhecida como legítima uma vez que as leis não mudam costumes nem valores e a violência sobre as mulheres continua, em geral, enraizada na cultura dos povos.

A alteração das práticas existe, mas é lenta: as mulheres não conhecem nem usufruem dos direitos que têm ao seu alcance de forma a não continuarem submissas a situações de injustiça; a nível jurídico verifica-se a grande discrepância entre a lei e a sua aplicação; e a polícia continua maioritariamente a remeter os casos de violência doméstica para situações do foro privado e familiar. De facto, foi o remeter este tipo de casos para o domínio privado que, durante muito tempo, afastou a violência sobre as mulheres do campo legal e de qualquer influência das instituições. Hoje em dia estas actuações são consideradas indispensáveis.

Em Portugal, só após o 25 de Abril de 1974 é que o tema da violência doméstica começa a emergir no espaço público quando alguns grupos de mulheres invocam determinadas problemáticas relacionadas com as mulheres, nomeadamente as desigualdades de oportunidades em função do género. No entanto, e ao contrário do que acontece noutros países, só a partir dos anos 80 e com maior proeminência nos anos 90, o tema da violência doméstica conquista um lugar no espaço público e na política.

A mudança social não se deu mais cedo em Portugal pois “as mulheres portuguesas não terão sido influenciadas pelos movimentos feministas dos outros países que, nos anos 60 e 70, começaram a fazer emergir temas tão obscuros como a violência sexual contra as mulheres e as crianças e, com estes, a violência doméstica” (APAV). Nestas décadas, Portugal vivia ainda sob um regime ditatorial, e nos anos 70 a construção da democracia exigia outras preocupações e o interesse por problemas sociais mais visíveis.

A Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres (CIDM), organismo público na dependência do Conselho de Ministros, foi criada pelo Decreto-Lei n.º 166/91, de 9 de Maio. Este organismo teve um papel importante na colocação do tema na opinião pública, desenvolvendo publicações informativas e um serviço de atendimento a mulheres em Lisboa e no Porto. Esta comissão é assim uma primeira expressão da preocupação do Estado português em relação às questões das mulheres.

Na Conferência Mundial sobre as Mulheres, realizada em Pequim em 1995, foi adoptada uma Plataforma de Acção pelos Governos assumindo “o compromisso de implementar todo um conjunto de medidas destinadas a prevenir e eliminar a violência contra as mulheres” (CIDM). No seguimento desta conferência foi lançado o Plano Nacional Contra a Violência Doméstica para os anos de 1999-2002, seguindo-se o II Plano (2003-2006) e o III Plano (2007-2010). Estes planos consistem num modelo de orientação política para analisar o fenómeno, apontando para “uma consolidação de uma política de prevenção e combate à violência doméstica, através da promoção de uma cultura para a cidadania e para a igualdade, do reforço de campanhas de informação e de formação, e do apoio e acolhimento das vítimas numa lógica de reinserção e autonomia” (CIDM).

Nestes planos é apresentado um conjunto de medidas no sentido de combater esta violência. Há, no entanto, que salientar algumas dificuldades na sua aplicação prática. Por exemplo, das medidas destaca-se o afastamento do agressor da casa de residência da vítima; habitualmente, contudo, acontece o contrário: é a vítima que sai da residência, sem que até hoje esta medida tenha sido implementada. Assim, apesar destes Planos enquadrarem a actividade dos diferentes operadores com intervenção directa junto da vítima, salientam-se as inúmeras dificuldades na aplicação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas existentes em Portugal.

A nível jurídico, a violência doméstica só começou a fazer parte das preocupações da legislação portuguesa no Código Penal de 1982, através da consagração do crime de maus-tratos ou sobrecarga de menores e subordinados ou entre cônjuges, previsto e punido pelo seu artigo 152.º.

No entanto, a intervenção do Estado português fez-se apenas pela via legislativa punitiva, ou seja, criminaliza determinadas condutas no meio doméstico consideradas violentas. É inexistente, em Portugal, qualquer mecanismo de protecção à vítima, similar às civil protection orders anglo-saxónicas. Esta é uma ordem judicial que tem como intenção obrigar um indivíduo, que tenha cometido um acto violento, a abster-se de realizar novos actos de violência contra a pessoa à qual foi concedida a ordem

A 27 de Maio de 2000 foi levada a cabo uma alteração no Artigo 152 do Código Penal, por iniciativa do Bloco de Esquerda, pela qual a violência doméstica passou a ser crime público. Isto significa que a violência doméstica passou a ser considerada um crime de maior gravidade uma vez que põe em causa a violação dos valores sociais mais relevantes. Assim, a denúncia do crime de violência doméstica já não obriga a uma declaração de vontade de denúncia da vítima, passando antes a ser obrigatória para as entidades policiais e para funcionários que nos seus serviços tenham conhecimento destes crimes e facultativa para outras pessoas.