As contrapartidas financeiras que o Estado cobrou às energias renováveis
à cabeça, nos últimos dois anos, para financiar despesa pública,
permitiam reduzir em 55 por cento o défice tarifário que sobrecarrega
especialmente os consumidores domésticos.
Se isso tivesse acontecido, os consumidores receberiam uma notícia a que
já não estão habituados: veriam a sua factura actual de energia descer
entre quatro e 18 por cento.
Com a extensão da concessão das barragens à EDP, os concursos para as
novas grandes barragens, para as centrais mini-hídricas e fotovoltaicas,
o Governo arrecadou ou vai arrecadar nas próximas semanas um total de
964 milhões de euros, dinheiro com o qual acode à despesa do Orça- mento
do Estado. Isto faz do negócio eléctrico e das energias renováveis uma
fonte de financiamento apetecível. Mas esta coexiste com uma dívida
acumulada nos anos de tarifas artificialmente mais baixas, que chegará a
1758 milhões de euros no fim do ano, e que está a ser paga com juros
pelos consumidores - é o défice tarifário.
Não há contas oficiais
para o cálculo da redução da factura eléctrica, mas contas apresentadas
pelo presidente da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE)
em Outubro passado aos deputados ajudam a lá chegar. No Parlamento,
Vítor Santos disse que o novo subsídio de 60 milhões de euros anuais às
eléctricas, a chamada garantia de potência, representa um por cento da
subida no preço da electricidade em 2011. Es- te novo custo é pago por
todos os con- sumidores. Metade (quase cinco milhões) são domésticos e
são estes que pagam os custos com a produção especial a partir de fontes
renováveis. Os concursos para as centrais mini-hídricas e fotovoltaicas
incluem-se especificamente nesta produção.
Caso revertessem
para o sistema eléctrico apenas as contrapartidas financeiras destes
dois concursos (110 milhões de euros), o défice tarifário caía seis por
cento, o que permitia uma descida de quatro por cento da tarifa para os
domésticos. Se a intenção fosse pôr também as receitas das grandes
barragens, a grande hídrica, a contribuir, o défice tarifário global
descia 55 por cento. Como esta não en- tra na produção especial e é paga
por todos os consumidores, metade do benefício seria para os
domésticos, que veriam a sua conta da luz descer, assim, 18 por cento,
enquanto os médios e grandes consumidores da indústria e serviços tinham
uma diminuição equivalente a 14 por cento.
A ideia de Manuel Pinho
A
ideia de pôr as receitas da grande hídrica a pagar os custos do sistema
eléctrico chegou a ser defendida pelo ex-ministro da Economia Manuel
Pinho. Em 2008, quando a EDP pagou 759 milhões de euros pela extensão da
concessão das barragens, o então ministro anunciou que o valor
reverteria na sua totalidade para o sistema eléctrico, parte para abater
ao défice tarifário e parte para um fundo para amortecer as subidas das
tarifas eléctricas em anos de seca. No entanto, não foi isso que
aconteceu: 528,7 milhões de euros foram para ajudar a baixar os custos
em dívida incluídos no referido défice, 55 milhões serviram para pagar
as taxas de recursos hídricos dos empreendimentos que ficaram no Estado,
constituindo receita do Instituto Nacional da Água, 7,7 milhões de
euros foram para a Companhia Logística de Combustíveis da Madeira, e
ainda estão por aplicar 167 milhões de euros, sem destino certo. O
Ministério da Economia e Inovação admite que "uma parte substancial"
poderá ser usada para saldar custos de convergência tarifária das
regiões autónomas ainda não pagos, mas ainda não há contas definidas.
O
Estado encontrou uma nova fonte de receita na concessão das novas
grandes barragens. As licenças para Iberdrola, Endesa e EDP totalizaram
624 milhões de euros de encaixe financeiro e foram utilizados para
despe- sa pública geral. Com os concursos para as centrais mini-hídricas
e solares fotovoltaicas, que têm de estar fechados até final do ano, o
Estado assumiu que procurava a "mais alta contrapartida financeira",
como explicita no anúncio do concurso, e espera arrecadar mais 110
milhões de euros ou um pouco mais, sendo verbas que vão servir, de novo,
para fins fora do sistema eléctrico.
Teixeira dos Santos
assumiu, por exemplo, que 80 milhões dos 550 milhões de euros de défice
adicional resultante do acordo PS/PSD para o Orçamento do Estado para 2011 seriam pagos com as receitas de novas concessões nas energias renováveis.
O
apetite do Estado por estes paga- mentos à cabeça antecipa, por um
lado, o recebimento de proveitos da actividade do operador, que seriam
distribuídos no tempo e beneficiariam, em princípio, o próprio sistema
eléctrico. Por outro, o mesmo apetite cresceu à medida que as contas
públicas se deterioraram, mas esta prática tem uma consequência pouco
visível de penalização dos consumidores domésticos, que são os pagadores
das tarifas da produção renovável em regime especial. Estas rendas à
cabeça, que se transformam em custos do sistema eléctrico, indicam que
as empresas do sector andam a pagar cerca de um milhão de euros por
megawatt de potência concedida.
O concurso para as centrais
solares fotovoltaicas é um exemplo de como as contrapartidas financeiras
contribuem para não só não baixar as tarifas, como para as agravar. O
Governo pediu um pagamento à cabeça às empresas, o qual compensou com um
aumento da tarifa de 75 para 93 euros o megawatt/hora que as empresas
receberão quando os empreendimentos estiverem a funcionar. Este
sobrecusto será pago pelos consumidores, constatando-se que as rendas
pagas antecipadamente são tratadas, do ponto de vista contabilístico,
como um royalty, um custo imputado à actividade das empresas, a par das
instalações e dos equipamentos.
"O Estado está a usar os
promotores de energias renováveis como financiadores e fixa-lhes tarifas
garantidas ao longo de anos para se ressarcirem do dinheiro", diz o
secretário-geral da APREN, António Sá da Costa. Este responsável refere
que no concurso para as centrais fotovoltaicas, o sector "ia propor uma
descida da tarifa de 320 euros MWh para 230 e o Estado fixou-a em 269
euros", ou seja, acima do valor que a própria indústria estava disposta a
aceitar.
Para além de dar valores mais atractivos para a tarifa
garantida, como compensação futura, o Governo, em alguns casos, tem
alargado o prazo dessa garantia bem como o das concessões. No concurso
das mini-hídricas, o prazo da tarifa chega a 25 anos, mais cinco do que a
legislação anterior previa, e o tempo de concessão sobe de 35 para 45
anos.
A tarifa sobe e a factura eléctrica também. As empresas
reclamam que, de cada vez que o Governo usa este mé- todo, a pressão
financeira sobre elas sobe. A equação entre o esforço financeiro e o
retorno futuro é avançada para explicar a desmotivação no recente
concurso das mini-hídricas em que alguns lotes ficaram vazios.
A
discussão interessa especialmente ao sector das renováveis, na
contra-argumentação quanto ao nível real de benefícios de que usufrui e
os custos incorporados nas tarifas. O presidente da Endesa Portugal,
Nuno Ribeiro da Silva, está entre os mais críticos desta prática
governativa, comparando a situação à desventura de uma herança, recebida
antes de tempo e por herdeiros fora da família.
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