Não vale a pena discutir. Qualquer
que seja o resultado das eleições, nós, portugueses, apoiamos Durão
Barroso para mais um mandato à frente da Comissão Europeia. Com esta
posição, aparesentada como muito patriótica e europeísta, Sócrates e o
PS cravam mais um prego no caixão da democracia europeia.
Há, em Portugal e nos outros 26 Estados-membros da UE, uma notória
falta de debate público sobre as políticas concretas da União, sendo
estas apresentadas normalmente como soluções meramente técnicas e
neutras ou, quando é impossível negar o seu carácter político, como
inevitáveis e sem alternativa. Mas, se as soluções são técnicas, porque
não deixá-las a cargo dos técnicos? E se são inevitáveis, então
deveriam ser também invotáveis, já que, em democracia, só se vota
quando há várias alternativas possíveis. A inevitabilidade não é
compatível com uma escolha livre.
É devido a esta visão das
políticas europeias como sendo as únicas possíveis que as instituições
europeias investem sobretudo em informação e não na promoção do debate;
e é também esta ideia que baseia a posição dominante de que, quando os
povos se opõem ao que lhes é proposto (como fizeram com o Tratado) é
apenas por falta de informação e não por terem uma opinião fundamentada
e contrária. A solução nunca seria ouvir e respeitar a diferença, muito
menos alterar a política, mas apenas insistir com mais propaganda para
promover a adesão e o apoio dos cidadãos ao projecto europeu tal como
está hoje desenhado.
No entanto, o afastamento dos cidadãos
relativamente à vida política da UE e o crescente desinteresse pelas
eleições europeias é uma consequência lógica do sentimento generalizado
de que parece não haver uma relação directa entre o voto dos eleitores
e as políticas concretas da União, que se querem blindadas face à
incerteza dos resultados do voto popular.
A última vez que se
abriu deliberadamente a porta à entrada da voz do povo nos assuntos
europeus com um carácter deliberativo, foi nos referendos ao Tratado
Constitucional. Compreendido que foi que a voz do povo não afina no
coro do poder das lideranças europeias, rapidamente esta porta foi
fechada com estrondo na cara dos eleitores. Voltou-se, então, à
política do consenso entre os chefes.
Para além do Tratado, uma
outra matéria reservada deste consenso dos chefes é a escolha do
Presidente da Comissão Europeia, que é não só a face mais visível da
União, a nível interno e externo, mas também uma figura chave na
arquitectura constitucional europeia, dadas as vastas competências do
órgão a que preside, entre as quais a está a competência exclusiva de
iniciar um processo de produção legislativa. Os co-legisladores (o
Parlamento e o Conselho) decidem sobre a legislação, mas não decidem
sobre o que decidem, só podendo decidir sobre aquilo que a Comissão
entender que podem decidir.
A presidência da Comissão é, pois,
um cargo altamente politizado e decisivo no panorama europeu. Como
compreender então o apoio de Sócrates e do governo PS à recandidatura
de Durão Barroso?
Para além dos comentários óbvios, mais ou
menos malévolos, sobre a identificação das suas políticas, há uma outra
dimensão que não pode deixar de ser considerada. O apoio a Barroso é
apresentado como uma opção “patriótica”, matéria de consenso que se
sobrepõe à disputa política, assunto que deve ser despolitizado. Nós,
portugueses, apoiamos Barroso. Salazar não deixaria de apreciar este
fervor patriótico de unidade nacional acima das divisões partidárias.
E
note-se que Sócrates apoia Barroso antes das eleições europeias e
independentemente do seu resultado. Contrariamente a esta visão do
nosso primeiro-ministro, o próprio Tratado prevê que
“Tendo em conta as eleições para o Parlamento Europeu e depois de
proceder às consultas adequadas, o Conselho Europeu, deliberando por
maioria qualificada, propõe ao Parlamento Europeu um candidato ao cargo
de Presidente da Comissão.” Será que os socialistas já
desistiram de ganhar as eleições europeias e de que o resultado das
eleições seja tido em conta na escolha do futuro Presidente da
Comissão? Talvez, mas pior do que isso, o que o PS nos diz claramente é
que, neste como noutros dossiers relevantes da UE, os eleitores não
terão qualquer voto na matéria.
Quando votam nas eleições para o
Parlamento português, os eleitores sabem que do seu voto dependerá a
política a ser seguida, bem como a escolha do primeiro-ministro. Agora,
que vão votar para o Parlamento Europeu, o que lhes é dito é que o seu
voto não irá mudar nada.
Este é o tipo de atitudes que
influencia fortemente o baixo grau de envolvimento da população na
política europeia, e só pode alimentar o crónico desinteresse e a fraca
taxa de afluência às urnas nas eleições europeias.
Entre os
estudiosos que debatem a construção europeia, há vários autores que
defendem esta linha de actuação, considerando que, para proteger o
projecto, deve evitar-se a sua excessiva politização. Lembram que o
êxito dos “pais fundadores” aquando da criação das instituições
europeias se ficou a dever à sua habilidade para evitar conflitos
ideológicos, que seriam fatais numa Europa construída na base de países
que tinham acabado de se digladiar numa guerra total. Muitos defendem
que a despolitização da questão europeia continua hoje a ser
fundamental para a continuidade do projecto, que só poderá avançar
protegido da luta política e da pressão imprevisível do voto popular.
Outros,
pelo contrário, defendem que só a politização da questão europeia pode
voltar a despertar o interesse das populações e ganhar o apoio dos
eleitores. Sem reavivar a chama da democracia, não se poderá voltar a
entusiasmar os cidadãos pelo projecto europeu. Sem uma disputa aberta,
sem alternativas claras, nomeadamente no que se refere à escolha dos
principais protagonistas, a indiferença continuará a minar a relação
das populações com as instituições da União e as surpresas
“desagradáveis”, como as dos últimos referendos, serão cada vez mais
frequentes.
Nesta perspectiva, nas eleições de 2009, que serão
mais uma vez basicamente nacionais, os partidos europeus não se
deveriam ter limitado à apresentação dos respectivos manifestos
eleitorais; deveriam ter apresentado cada um o seu candidato a
Presidente da Comissão, de forma a que os diferentes projectos
aparecessem associados a um rosto e a uma política europeia demarcada
da dos outros partidos. Isto introduziria alguma clareza nas
alternativas em apreço, daria uma dimensão verdadeiramente europeia às
eleições e poderia entusiasmar os eleitores numa saudável disputa para
além dos estreitos limites geográficos e temáticos das campanhas
nacionais.
Democratizar a UE: eis um projecto inadiável que não
goza ainda de grande apoio, na Europa como em Portugal. Aliás, no nosso
país, a questão europeia foi apresentada desde o início como objecto de
consenso, um verdadeiro e indiscutível “desígnio nacional”. Mas é
precisamente nesta política do consenso que reside a chave ideológica
do défice democrático europeu.
A democracia não é o reino
enevoado do consenso, é um mundo vivo de escolhas e de alternativas.
Para democratizar a UE vai ser preciso politizá-la e entregá-la
transparente nas mãos soberanas dos povos, rompendo de vez com a
opacidade podre dos consensos e acordos à porta fechada. Como aquele
que nos querem agora impingir em torno de Durão Barroso e que, nem nós, portugueses, nem nós, europeus, estamos condenados a engolir e calar.
Renato Soeiro, publicado no seu blog
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