Estamos em vésperas de eleições para o Parlamento Europeu (PE). Apesar
dos altos índices de abstenção que se prevê poderem ocorrer,
confirmando e agravando uma tendência que já vem de longe, estas
eleições são encaradas pela generalidade dos cidadãos com uma grande
naturalidade, como se de um dado adquirido e imutável se tratasse,
longe de qualquer questionamento sobre o acto em si mesmo.
Porém,
a eleição dos membros do PE através de sufrágio directo e universal,
como hoje fazemos, não nasceu com as instituições europeias de forma
tão natural como por vezes se pensa. Não foi mesmo a forma adoptada
para a escolha dos deputados durante mais de um quarto de século. Foi
antes o resultado de longos debates e pressões, de sucessivas decisões
e adiamentos. Apesar de a instituição parlamentar europeia ter começado
a reunir logo em 1952, só em 1979 se realizaram as primeiras eleições
directas dos seus membros.
Será também interessante notar que a presente forma de eleição, apesar
de pouco ou nada questionada, não corresponde certamente a um ponto
final deste longo processo de decisão, mas deverá ser vista apenas como
um (mais um) estádio transitório da democracia parlamentar europeia em
construção, que poderá muito bem ter neste ano que corre a sua
derradeira edição com o formato actual. A esquerda não poderá alhear-se
deste debate, nem deixar de ter posição sobre as alternativas que se
perfilam no horizonte próximo.
O PASSADO
Marcas de um início difícil
A
Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) foi criada em 1951 pelo
Tratado de Paris. Este tratado, que entrou em vigor em 1952, definiu as
primeiras instituições do projecto europeu, entre as quais uma
Assembleia parlamentar com poder de controlo, que era composta por 78
deputados, indicados pelos seis países fundadores: 18 pela Alemanha,
França e Itália, 10 pela Bélgica e Holanda e 4 pelo Luxemburgo. Quanto
ao método de escolha destes primeiros deputados europeus, o Tratado
abria duas possibilidades, a decidir por cada um dos seis países
contratantes: ou os Parlamentos nacionais (1) designavam no seu seio,
uma vez por ano, os seus delegados para a Assembleia parlamentar
europeia, ou os faziam eleger por sufrágio universal directo.
(1)
Ao longo deste texto utilizar-se-á, por simplificação, a designação
“nacional” como referência a um Estado-Membro, apesar de haver na UE
nacionalidades que se estendem por mais do que um Estado, bem como
Estados que incluem várias nacionalidades.
Nenhum dos
seis Estados-Membros optou pelo sufrágio universal. Alegava-se que a
designação dos eurodeputados pelos Parlamentos nacionais, apesar de ter
a desvantagem de diminuir o carácter representativo e a força da
Assembleia, tinha a vantagem de evitar a presença de elementos
considerados adversários da Comunidade.
Vivia-se na Europa a
ressaca do pós-guerra e o início da guerra fria. José Staline ainda era
vivo e em alguns dos seis países, com especial destaque para a França e
a Itália, havia partidos comunistas fortes, com possibilidade de
elegerem deputados europeus num sufrágio universal directo. Vistos
pelos fundadores como adversários irredutíveis do projecto europeu e
como aliados do bloco soviético, o novo inimigo, havia que fazer tudo
para evitar a sua presença na Assembleia. Sacrificou-se portanto a
eleição directa.
Ainda durante o ano inicial de 1952, começaram
os debates sobre a criação de uma comunidade política que pudesse
complementar a CECA. Foi aprovado nesse mesmo ano um novo Tratado que
instituia a Comunidade Europeia de Defesa (CED), um mecanismo que iria
coordenar as forças armadas de toda a Europa. Esta Comunidade deveria
ser acompanhada por uma outra de cariz eminentemente político. Um “não”
da França à ratificação deste Tratado fará com que a CED nunca chegue a
ver a luz do dia. Mas, em todo o processo, continuaram acesos os
debates sobre o método de eleição dos deputados, com a hipótese do
sufrágio universal directo sempre em cima da mesa e contando com
fervorosos defensores, pelo menos para uma das câmaras do Parlamento,
que alguns queriam bi-camaral, à imagem dos Estados federais. Alguns
opositores da ideia, num argumento que apresenta uma curiosa
actualidade, afirmavam que, apesar de ser bom chamar os povos a
participar na vida europeia, seria preciso evitar o risco de reduzir a
representatividade da Assembleia convocando eleições em que poucas
pessoas estariam interessadas.
Apesar do fracasso do projecto
CED, ao longo da primeira metade da década de 50 os deputados da
Assembleia comum da CECA continuaram os debates sobre o reforço dos
seus poderes e sobre o método da sua eleição.
Em Junho de 1955,
dá-se um passo importante: numa conferência em Messina, os ministros
dos negócios estrangeiros dos seis lançam a ideia de uma Europa Unida,
do Mercado Comum e de um processo de “construção europeia”,
constituindo um comité intergovernamental para apresentar uma proposta
concreta, que ficou conhecida como “Relatório Spaak”, adoptando o nome
do presidente do comité. Este relatório vem a ser aprovado numa cimeira
ministerial em Veneza, em Maio de 1956.
É de sublinhar, para o
assunto que aqui nos interessa, que para este passo, que viria a ser
decisivo para a Europa, foi encarregado um comité intergovernamental e
não a Assembleia de parlamentares, que foi assim marginalizada, apesar
de estar há alguns anos a promover debates e estudos sobre o mesmo
tema. Centradas as atenções na construção do mercado comum, a questão
do método de eleição dos deputados e, concretamente do sufrágio
universal, deixa de estar nas prioridades da agenda europeia. São
expressos mesmo alguns receios de que uma eleição europeia pudesse
servir para os eleitores expressarem, mais do que uma opção sobre as
questões europeias, algum descontentamento com os governos e ainda de
que poderia haver algum conflito de legitimidade entre os eleitos para
o parlamento europeu e os deputados do parlamento nacional, que até
aqui eram a base obrigatória de recrutamento dos representantes
parlamentares europeus, que acumulavam os dois mandatos e eram tidos
como a garantia segura de um bom relacionamento institucional.
O
duplo mandato de deputado nacional e deputado europeu haveria de se
manter, se não como obrigatório, pelo menos como possível, até 2002,
quando foi finalmente declarada a incompatibilidade dos cargos, o que
teria efeitos práticos pela primeira vez apenas na actual legislatura
2004-2009.
O processo de discussão sobre a construção de uma
Comunidade Económica Europeia culminou na assinatura do Tratado de
Roma, em 1957, que não resolveu a questão da eleição directa do
Parlamento Europeu, cujos membros continuaram a ser designados pelos
parlamentos nacionais. No entanto, a nova Assembleia Parlamentar
constituída em 1958 de acordo com o Tratado, decidiu criar um “grupo de
trabalho para as eleições europeias” para propor uma solução. Chega a
aventar-se uma solução mista, em que, durante um período de transição,
uma parte do Parlamento seria eleita por sufrágio universal directo e
outra parte por nomeação dos parlamentos nacionais segundo o princípio
do duplo mandato.
O grupo de trabalho estudou também o problema
dos círculos eleitorais com o intuito de optimizar a representação dos
cidadãos, tendo chegado a formular a hipótese de criação de círculos
que poderiam atravessar fronteiras se tecnicamente se justificasse, mas
pressões políticas acabariam por os obrigar a deixar cair esta hipótese
na versão definitiva do documento, respeitando-se as fronteiras no
estabelecimento dos círculos eleitorais.
O documento final deste
grupo de trabalho é apresentado em 1960, dividido em cinco relatórios
sobre temas específicos. Um deles, o projecto de Convenção, tenta
unificar entre todos os Estados apenas alguns dos procedimentos
eleitorais, como a simultaneidade de realização dos escrutínios e a
duração do mandato dos deputados, os limites aceitáveis para a idade
mínima dos eleitores, a proibição de realização de outras eleições no
mesmo dia das eleições europeias, as incompatibilidades e os duplos
mandatos. Uma questão sensível, a da admissibilidade das candidaturas,
é deixada a cargo dos Estados-Membros, sobretudo para evitar ter que
tomar posição sobre o facto de os partidos comunistas serem proibidos
na Alemanha, enquanto noutros países integravam as forças parlamentares
com grupos de dimensão significativa. É proposto ainda triplicar-se o
número de deputados estipulado nos Tratados de Roma, devendo o
hemiciclo passar para 426 lugares, mantendo o número de 142 deputados
nomeados pelos parlamentos nacionais e acrescentando o dobro de
lugares, a preencher por eleição directa.
O grupo desiste de
propor um sistema eleitoral completamente uniforme, uma questão de
difícil acordo, para não fragilizar a hipótese de aprovação do
documento e do sufrágio universal directo por todos os governos.
Mas,
mesmo assim, este projecto, apesar de apoiado por cinco dos seis
Estados-Membros, é bloqueado pela França, que considera prematuro
avançar neste sentido. Neste país iniciara-se a Quinta República, com o
seu novo regime semi-presidencial e o seu novo presidente Charles de
Gaulle, cujas ideias não acompanhavam o fervor europeísta e as
propostas do grupo de trabalho, antes se voltavam para uma Europa dos
Estados, cuja coordenação melhor se faria através de reuniões dos
chefes de Estado do que de assembleias parlamentares pan-europeias,
cujo cosmopolitismo estava longe de se enquadrar na idiosincrasia do
general. Os avanços no projecto institucional europeu, particularmente
no que se refere às eleições, ficariam assim congelados e seriam pouco
discutidos ao longo de quase uma década.
Só em 1968 voltam à
ribalta, através de um grupo de deputados do Parlamento Europeu (a nova
designação que a Assembleia parlamentar tinha assumido a partir de
1962), que apresenta uma proposta para relançar o debate, não apenas
convidando o Conselho a deliberar, mas ameaçando-o com uma acção
judiciária contra a inércia deliberativa nesta matéria, o que estava
contemplado num artigo (175.º) do Tratado da CEE aprovado em Roma.
1968
foi um ano de forte agitação política, sobretudo em França, mas a
questão europeia tinha estado praticamente ausente do movimento de
Maio. No entanto, em algumas acções estudantis no ano de 69, foi
levantada a reivindicação do direito de voto em eleições europeias. A
questão começava lentamente a tornar-se um tema de debate público.
A
proposta do grupo de deputados é aprovada em 1969 em reunião plenária
do Parlamento Europeu. A ameaça do Parlamento sobre o Conselho produziu
resultados imediatos.
O Conselho encarrega o Coreper (Comité dos
representantes permanentes dos Estados) de elaborar um relatório. As
discussões são complicadas, tanto do ponto de vista político como
técnico, e arrastam-se ao longo de alguns anos. Várias questões estavam
em causa: o aumento do peso político do PE aportado pela sua eleição
directa e o novo equilíbrio institucional daí resultante; a repartição
de lugares entre os Estados (respeitando mais ou menos a proporção
directa relativamente à população de cada um), complicadas ainda mais
pelas negociações de adesão com quatro novos Estados (Dinamarca,
Irlanda, Reino Unido e Noruega, sendo que esta última nunca viria a
aderir); o sistema eleitoral; o número de deputados, a duração dos seus
mandatos e a questão do duplo mandato (obrigatório, possível ou
proibido); a simultaneidade do acto eleitoral nos diversos Estados; a
idade mínima para adquirir capacidade eleitoral activa e passiva; a
admissibilidade de candidatura dos partidos.
Entretanto, a
cimeira de Paris de 1972 aprova o projecto de criação de uma União
Europeia até ao início da próxima década e as eleições directas são
integradas neste novo passo em frente na construção institucional, que
será já feito a nove e não a seis.
Finalmente, a decisão sobre a eleição directa
Só
em 1974 se acorda numa versão final do projecto de Convenção, propondo
uma solução uniforme para algumas das questões em debate sobre a
eleição directa e deixando outras em aberto para serem decididas por
cada um dos Estados-Membros, de acordo com as suas tradições políticas.
O projecto foi então aprovado (longe da unanimidade) em plenário do PE
no início de 1975. Em 1976, o Conselho toma finalmente uma decisão
formal sobre a realização das eleições, que deverão ter lugar em Maio
ou Junho de 1978.
No entanto, este acto terá ainda de ser
ratificado atempadamente pelos nove Estados-Membros. Feito o ponto da
situação em Fevereiro de 1978, constata-se que apenas quatro países
tinham procedido à ratificação e precisamente aqueles que se temia
serem os mais problemáticos: França, Reino Unido, Dinamarca e Irlanda.
Todos os Estados tidos como mais europeístas e abertos às eleições
directas falharam a ratificação no prazo necessário. O Parlamento
aprova uma declaração forte deplorando que o Conselho não esteja em
condições de cumprir o compromisso estabelecido.
Na cimeira
europeia de Copenhague, em Abril de 1978, o Conselho fixa novamente uma
data (que agora seria definitiva) para as primeiras eleições europeias:
entre 7 e 10 de Junho de 1979. O Parlamento Europeu, então uma câmara
com 198 deputados nomeados pelos Parlamentos nacionais, passará a ser
constituído por 410 deputados eleitos por sufrágio directo e universal.
Foram
precisos uns longos 27 anos, plenos de debates e contradições, sob
imensas pressões que foram provocando avanços, recuos e adiamentos,
para que se viesse a tornar realidade um direito fundamental, incluído
como possibilidade logo no primeiro Tratado europeu de 1952. É um
direito que continua a ser hoje uma realidade dinâmica, ainda em
construção, mas que se deseja irreversível.
Tinham e têm razão
aqueles que afirmam que a União Europeia, apesar de constituída por
democracias, não tem sido ela própria um exemplo de democracia. O
simples acto de exercermos o direito de voto nas próximas eleições
europeias é, já em si, uma forma de condenação daqueles que pretenderam
e pretendem uma Europa cativa das elites políticas e dos eurocratas. Se
não o fizermos por outras razões, façamo-lo pelo menos como homenagem a
todos aqueles que, ao longo de décadas, se esforçaram por fazer avançar
a incipiente democracia europeia contra as forças que a bloquearam e
continuam a bloquear,
A questão do sistema eleitoral
No
documento que definiu o enquadramento da eleição directa dos deputados
europeus, o “Acto relativo à eleição dos representantes ao Parlamento
Europeu por sufrágio universal directo, anexo à Decisão do Conselho de
20 de Setembro de 1976”, o art.º 7.º, estipulava que “1.
O Parlamento Europeu elaborará, nos termos do n.º 3 do artigo 21.º do
Tratado que institui a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, do n.º 3
do artigo 138.º do Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia
e do n.º 3 do artigo 108.º do Tratado que institui a Comunidade
Europeia da Energia Atómica, um projecto de processo eleitoral
uniforme. 2. Até à entrada em vigor de um processo eleitoral uniforme,
e sem prejuízo das outras disposições do presente Acto, o processo
eleitoral será regulado, em cada um dos Estados-Membros, pelas
disposições nacionais.”
Como sabemos, este processo
eleitoral completamente uniforme nunca viria a ser adoptado e ainda
hoje não existe. Saber se deveria ou não existir, foi sempre uma
questão difícil de resolver, tanto para a direita como para a esquerda.
Vejamos o caso português. No nosso país, os deputados europeus são
eleitos num círculo único, segundo um método proporcional e sem
qualquer barreira mínima estabelecida. Este parece ser o melhor sistema
de todos os que se praticam na Europa. Tenderíamos, pois, a ser
favoráveis a que se estendesse a todos os Estados-Membros. Mas a
escolha de um sistema eleitoral único poderia recair noutro modelo que
não o nosso, isto é, pior do que o nosso, se considerarmos que o nosso
é o melhor. Estaríamos nós disponíveis para aceitar a alteração? Penso
que não. Será, pois, mais prudente apoiar a solução adoptada de definir
apenas princípios gerais e deixar aos Estados-Membros a decisão
soberana (dentro dos limites definidos por estes princípios) sobre o
seu sistema eleitoral para o Parlamento Europeu. O que não significa
abstermo-nos da crítica aos sistemas eleitorais que, em alguns países,
intencionalmente distorcem a proporcionalidade e prejudicam os partidos
mais pequenos.
O PRESENTE
As eleições de 2009
Eis-nos
portanto chegados às eleições, tais como as vivemos neste ano de 2009.
Votamos na mesma semana nos 27 Estados-Membros, alguns deles divididos
(para reinar) em vários círculos eleitorais, outros constituindo um
círculo único. Em alguns países, os eleitores serão obrigados a votar e
noutros não; os jovens austríacos de 16 e 17 anos terão direito de
voto, mas todos os outros terão de esperar pelos 18 anos; teremos
candidatos com idade mínima de 18 anos, ou de 21, ou de 23, ou mesmo de
25 se concorrerem em Chipre ou em Itália. No fim, contaremos os votos
cada qual à sua maneira, com métodos que nuns casos determinam em
poucas horas quem são os novos eurodeputados, e noutros só conseguem
chegar a uma conclusão ao fim de dois dias de cálculos complicados. Os
votos conseguidos pelos pequenos partidos serão aproveitados nuns
países para eleger pequenas delegações parlamentares na proporção do
seu apoio popular mas, noutros países, todos os votos abaixo de 4 ou de
5% serão confiscados pelos grandes partidos que, numa batota
institucionalizada por eles próprios, repartirão entre si alguns
lugares extra para além daqueles que os eleitores lhes concederam com o
seu voto. E assim escolheremos o conjunto dos 736 deputados, que antes
eram 785 e a seguir, provavelmente, virão a ser 754.
Não há,
pois, qualquer razão para olharmos para a forma das actuais eleições
europeias como um dado adquirido e uma solução estável. Pelo contrário,
a dinâmica do processo de construção europeia justifica que comecemos a
encarar desde já o que poderá ou deverá ser alterado no sistema
eleitoral, para prepararmos o passo seguinte.
O FUTURO
Mudar o quê?
Uma
das alterações mais candentes prende-se com o facto – que todos podem
facilmente constatar durante o presente período eleitoral –, de que
estamos em 2009 perante um conjunto de 27 eleições eminentemente
nacionais, mais do que uma eleição europeia descentralizada; e que os
factores de política interna prevalecem largamente sobre a temática
europeia nos debates, nos argumentos e também nas razões da escolha dos
eleitores. De alguma forma isto é ainda inevitável porque corresponde a
uma certa visão da UE como um mero complemento e espaço de coordenação
de acções políticas que continuam a ter o seu centro de gravidade
dentro dos Estados.
Embora não pareça razoável nem útil
enfraquecer esta interligação entre as agendas nacionais e a agenda
europeia, há que reconhecer que o sistema tem política europeia a menos
para as necessidades do momento. Porque, apesar de tudo, tem havido
algumas respostas europeias em diversos campos e seria conveniente que
estas respostas resultassem de opções claras antecipadamente sufragadas
pelos eleitores, pelo menos nas suas linhas gerais, em vez de
resultarem de negociações e combinações feitas a posteriori por pessoas
eleitas por motivos muitas vezes alheios ao que vai ser o seu real
papel nas instituições da UE.
Na fase histórica do processo de
construção europeia em que estamos, é já possível e desejável a
introdução de uma componente 100% europeia no processo eleitoral; essa
poderá ser mesmo uma das principais inovações para 2014.
Há pelo menos duas formas óbvias para o fazer, que se completam uma à outra.
Um círculo eleitoral europeu
Uma
das formas é a introdução de um círculo eleitoral europeu. É um tema
que já tem sido aflorado, tendo havido mesmo quem propusesse quantos
lugares do PE deveriam ser eleitos desta forma. Mas, porquê um círculo
eleitoral europeu?
A razão de fundo é que, se não há democracia sem demos, não há certamente democracia europeia sem um demos europeu, que é algo mais do que um conjunto de 27 demos
nacionais, que foram consolidados através da identificação (conflitual
que seja) com os mesmos problemas, os mesmos debates, os mesmos media,
os mesmos partidos e os mesmos políticos, que se admiram ou se detestam
conforme o ponto de vista de cada um, mas com os quais todos os
cidadãos do mesmo demos se relacionam. Neste sentido se pode dizer que
a actual forma de eleição europeia, compartimentada como está pelas
fronteiras (que já nem sequer existem para quem viaja ou faz os seus
negócios), pouco ou nada contribui para a construção desse demos europeu indispensável para o avanço da democracia europeia.
No
entanto, a possibilidade de adopção de um círculo eleitoral europeu não
parece facilmente compatível com a definição de deputado europeu
presente nos Tratados actualmente em vigor, em que os deputados são
considerados “representantes dos povos dos Estados reunidos na Comunidade”. Os eleitos neste círculo europeu não representariam propriamente o povo de nenhum Estado.
Mas a formulação é diferente no Tratado de Lisboa (que não está em vigor), onde se consideram os deputados “representantes dos cidadãos da União”.
É algo semelhante ao que se passa em Portugal com os deputados da
Assembleia da República que, embora eleitos por distritos ou regiões
autónomas, segundo a Constituição “representam todo o país e não o círculo por que são eleitos”.
Da mesma forma, os deputados europeus representarão os cidadãos de toda
a União e não apenas os do Estado por que foram eleitos.
Esta
alteração do Tratado, podendo parecer coisa menor, é de alcance
considerável. Permitirá, nomeadamente, evitar qualquer impedimento, com
base na lei fundamental da UE, à introdução do círculo eleitoral
europeu.
Este círculo viria ajudar à afirmação de temáticas comuns e de partidos e protagonistas políticos verdadeiramente europeus.
A
referência aos partidos políticos europeus no ordenamento jurídico da
União data já de 1992, do Tratado da União Europeia, onde se afirmava
(art.º 138.ºA) que “Os partidos
políticos ao nível europeu desempenham um importante papel como factor
de integração na União. Contribuem para a criação de uma consciência
europeia e para a expressão da vontade política dos cidadãos da União.” Esta referência tem-se mantido nos sucessivos tratados.
Mais
recentemente (em 2003 e em 2007), a participação institucional e o
financiamento dos partidos europeus foram regulamentados. Já existe,
pois, o enquadramento institucional para os sujeitos políticos com
escala adequada para a intervenção ao nível global da UE. No entanto, a
forma como as eleições europeias estão organizadas, faz dos partidos
nacionais os únicos verdadeiros protagonistas. É difícil acreditar que
possa haver campanhas realmente europeias enquanto não houver
candidaturas a um círculo eleitoral europeu ao qual possam concorrer
directamente os partidos europeus, apoiados (ou não) por
correspondentes forças nacionais.
Este círculo eleitoral
corresponderia, pelo menos numa primeira fase (e a UE constrói-se
basicamente passo a passo, logo a fase imediata é a única que pode ser
referida com alguma utilidade e consistência) a uma parte claramente
minoritária do PE. Há propostas de que este círculo corresponda a 10%
dos lugares, ou seja, setenta e tal deputados, variando conforme o
número total de assentos parlamentares. Não sendo o número exacto uma
questão de fundo, pareceria preferível que este círculo eleitoral
correspondesse a 100 lugares, a atribuir de forma proporcional directa,
ou seja, aproximadamente um lugar por cada ponto percentual conseguido
pelos partidos europeus, que se candidatariam directa e exclusivamente
a este círculo (sem prejuízo do apoio que possam dar aos partidos
nacionais que concorrem aos círculos nacionais e do apoio que destes
recebem na sua candidatura ao círculo europeu).
Este círculo
permitiria também ultrapassar alguns dos problemas levantados por
diferentes disposições legais e constitucionais de Estados-Membros
relativamente à admissibilidade de candidaturas de partidos com sede no
estrangeiro, como são geralmente os partidos europeus.
Os candidatos a Presidente da Comissão Europeia
A
outra alteração que pareceria positivo introduzir-se na campanha
eleitoral seria a apresentação, pelas diferentes correntes políticas
europeias, de um(a) candidato(a) ao cargo de presidente da Comissão
Europeia (CE).
O presidente da CE é, sem sombra de dúvida, o
rosto mais visível da União, mas as negociações que têm levado à
escolha dos nomes pelo Conselho não têm primado pela transparência
(como acontece com a generalidade das negociações que ocorrem neste
órgão).
O que está previsto nos Tratados em vigor sobre a sua nomeação é que
“[o] Conselho, reunido a nível de Chefes de Estado ou de Governo e
deliberando por maioria qualificada, designa a personalidade que
tenciona nomear Presidente da Comissão; essa designação é aprovada pelo
Parlamento Europeu.”
Mas este é um dos pontos que sofreram uma alteração significativa na redacção do Tratado de Lisboa, que estipula que “[t]endo
em conta as eleições para o Parlamento Europeu e depois de proceder às
consultas adequadas, o Conselho Europeu, deliberando por maioria
qualificada, propõe ao Parlamento Europeu um candidato ao cargo de
Presidente da Comissão. O candidato é eleito pelo Parlamento Europeu
por maioria dos membros que o compõem.”
Pela nova
filosofia do Tratado, o resultado das eleições para o Parlamento
Europeu terá que ser tido em conta pelo Conselho na escolha do nome a
propor. É verdade que não há uma relação directa obrigatória entre a
eventual filiação política do candidato e a força vencedora das
eleições parlamentares, mas os resultados eleitorais terão
obrigatoriamente de ser tidos em conta.
É por isso que a decisão
do PS de apoiar Durão Barroso antes de serem conhecidos os resultados
das eleições para o PE só pode ser vista ou como uma declaração
antecipada de desistência dos socialistas europeus relativamente à
perspectiva de vitória nestas eleições ou então como uma discordância
sobre este novo preceito do Tratado de Lisboa, que orgulhosamente
subscreveram e tão afanosamente defendem e exibem nos seus cartazes de
campanha.
Que o Partido Popular Europeu tenha declarado já o
seu apoio a Barroso, parece normal e até de saudar; estão a dizer: se
ganharmos, este é o nosso candidato. Não foi, no entanto, preciso ter
grande coragem política para o fazer, já que se trata apenas de manter
o presidente que está.
Lamentável é que os outros partidos
(todos eles, mas em especial o Partido Socialista Europeu) não façam o
mesmo, apresentando os seus próprios candidatos ao cargo e a respectiva
declaração política de candidatura. Mas para isso já seria necessária
alguma coragem política, que é coisa que hoje em dia não abunda por
aqueles lados.
A apresentação prévia de candidaturas teria
vários convenientes. O mais relevante talvez seja que estas
candidaturas dariam um carácter verdadeiramente europeu ao debate
eleitoral, com a mesma pessoa a percorrer os 27 Estados-Membros em
campanha, com o apoio dos partidos europeus e nacionais que a
apoiassem, funcionando como o principal elo de ligação entre as
candidaturas parlamentares, hoje ainda demasiado fechadas nas questões
nacionais.
Outro conveniente seria o de acentuar a politização
da UE e despertar o interesse de muitos europeus que normalmente se
desinteressam e se abstêem nestas eleições. Nas eleições para os
parlamentos dos seus países, os eleitores sabem que dos seus votos
resultará um ou outro governo, um ou outro primeiro-ministro, uma ou
outra política (embora muitas vezes esta última dicotomia seja mais
aparente do que real). Atendendo também à enorme personalização da
política actual, o aparecimento de candidaturas ao cargo, com rostos e
com programas, seria um factor que geraria muito mais interesse pela
disputa eleitoral europeia e muito mais vontade de participar.
A
mensagem que hoje se está a passar para os eleitores europeus é que,
votem em quem votarem, o chefe do executivo europeu será o mesmo: Durão
Barroso. Como estratégia de mobilização do eleitorado, seria difícil
fazer pior. A imagem que se está a dar é a de uma União imune ao voto
popular, cujo executivo é uma instância fora do alcance da democracia.
É
uma má imagem mas é, reconheça-se, uma imagem coerente com a recente
recusa da participação popular em referendos, quando foi preciso
aprovar o Tratado de Lisboa. O que se está a dizer repetidamente aos
povos é que, naquilo que verdadeiramente conta, a Europa não é convosco.
Conclusão
O
que é mais preocupante é que esta blindagem da UE face à opinião
política popular não é um desvio passageiro; é uma estratégia muito
antiga, que remonta aos primórdios do projecto europeu. Talvez os “pais
fundadores” não tivessem outra alternativa que não fosse a
despolitização da questão europeia para conseguirem construir uma
Comunidade económica entre países que tinham acabado de se invadir e
chacinar numa guerra total. Manter hoje esta estratégia de um aparente
consenso geral, pode ser óptimo para o mundo dos negócios – que se dá
mal com a transparência democrática e com a incerteza do voto popular
–, mas está a matar o projecto político da União, afastando-o cada vez
mais da vontade soberana dos povos, bloqueando o único caminho possível
para a refundação democrática da União.
A política do consenso é a base ideológica do défice democrático europeu.
A
bandeira da democracia política, da clareza nas diferenças de opinião e
da transparência nos processos de escolha, terá de ser erguida por
forças políticas diferentes daquelas que têm estado até agora ao
comando dos destinos da União e que constituem hoje um bloqueio à
participação cidadã. É isso que está em causa nestas eleições para o
Parlamento Europeu de 2009 e que certamente vai estar em cima da mesa,
de uma forma ainda mais clara, nas próximas eleições de 2014.
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