Miguel Portas em Vila Real para a apresentação do livro Périplo
22-Jul-2009
Miguel Portas estará dia 27, às 21h, na Biblioteca Municipal de Vila Real, para a apresentação do seu último livro - Périplo, histórias do Mediterrâneo - com
Camilo de Azevedo.
Esta obra, com fotos de Camilo de Azevedo e texto de Miguel Portas, é um livro de
viagens que visita lugares e
histórias, vidas e paisagens, mitos e ideias feitas. O Mediterrâneo que
nos propõe é fractal, encantador e assustador, antigo e moderno, e
imprevisível mesmo quando se parece repetir.
Périplo tem a ver connosco, portugueses: somos tributários de
uma das grandes utopias deste mar; a Atlântida, era na Península
Ibérica que se situava...
Comecemos pelo fim: Périplo inclui a série documental para
televisão que lhe está na origem, realizada por Camilo Azevedo, e que a
RTP emitiu em 2005. Foram as filmagens que então fizemos e o trabalho
de preparação documental que exigiram, que se encontram na base deste
livro.
Périplo é, em segundo lugar, um livro com fotografias embora
não seja um livro de fotografias. Por vezes, elas pontuam passagens da
escrita; outras, voam sobre esta. São apontamentos de viagem sem
encenação. Muitas foram tiradas durante as visitas de preparação para o
documentário, como material de trabalho, ou seja, como lembretes de
memória visual para as filmagens que se seguiriam; outras revelam o
modo como o Camilo foi captando os quotidianos dos lugares por que
passava. São fotografias de viagem num livro de viagens. Este “texto”
de instantâneos não se obriga às leis da concordância com a narrativa,
antes a complementa. Faz-se de paisagens com e sem rostos, de ofícios e
objectos, de cafés, montras e pormenores.
Finalmente, algumas observações sobre o livro escrito. Périplo
conta histórias, mas não é um livro de história; detém-se em paisagens,
gentes e sonhos deste tempo, mas não é uma reportagem; visita ruínas e
obras de arte, mas distancia-se do registo ensaístico. Na verdade,
mistura estas distintas linguagens. Talvez se deva colocar na
prateleira dos livros de viagens, talvez. Mas nem é um guia turístico,
nem a escrita é a da introspecção do narrador em face das grandezas e
misérias deste mundo. Périplo é um livro de viagens porque
viaja. Por vezes, começa onde o documentário termina; noutros casos,
conclui-se onde as imagens se iniciam. Pode ser lido do principio para
o fim, mas o leitor pode escolher o seu próprio itinerário. Não se
perderá se o fizer do meio para cada um dos lados ou às “arrecuas”, do
fim para o princípio. No fundo, Périplo é um livro em forma de mosaico porque o próprio Mediterrâneo é um mosaico.
Se este é um livro de viagens no Mediterrâneo, ele não visita todo o
Mediterrâneo. Périplo segue as rotas de Oriente para Ocidente e de Sul
para Norte mais do que o inverso. Foi uma opção ditada pelas
circunstâncias. Quando partimos para a série documental deparámo-nos
com uma dificuldade: como surpreender, se o Mediterrâneo fora mil vezes
filmado e historiado? Este problema não se colocara na anterior série
que tínhamos feito para a RTP, o Mar das Índias. Os lugares que então
visitámos não eram conhecidos da grande maioria dos telespectadores.
Com o grande lago interior dos romanos, pelo contrário, o risco era o
da saturação das imagens. Instintivamente, a nossa pesquisa dirigiu-se
para lugares e monumentalidades menos divulgadas. Os produtores da
série gostaram da ideia. Saía mais barato filmar ruínas gregas e
romanas na Líbia do que em Atenas ou Roma. Gostaríamos de nos ter
perdido pelos canais de Veneza, claro, mas em seguida faltariam os
recursos para as areias. Por isto e por aquilo, a opção pelo Sul acabou
por se projectar no próprio livro.
Périplo podia, por exemplo, ter começado por um fragmento das minhas notas de viagem:
“Revejo as fotografias do Camilo Azevedo e
selecciono as de igrejas e mesquitas erguidas sobre antigos templos
pagãos. Nota: os lugares sagrados são eternos. Mas nem sempre o novo se
ergue sobre os despojos do velho. Por vezes, enxerta-se nele. Foi o que
sucedeu, por exemplo, na basílica de Santa Sofia em Istambul ou na
mesquita de Córdoba”. (1)
Se tivesse incluído o Norte do Mediterrâneo no Périplo
escrito, seguramente teria divagado sobre os motivos que me levam a
considerar mais delicada a intromissão islâmica na basílica bizantina
do que o implante cristão na grande casa dos arcos. A minha hipótese
especularia sobre a cultura dos conquistadores de um e de outro lado. O
otomano, Methmet II, preferiu erguer ao lado de Santa Sofia uma rival
que a suplantasse. A mesquita azul é belíssima por dentro, mas o
resultado fintou a intenção. Esta construção valoriza, acima de tudo, o
milagre que os “rumis”, quase mil anos antes, tinham oferecido ao seu
Deus.
Se o paraíso existe, acrescentaria, é em Santa Sofia que tem a sua sala de espera.
O passo seguinte do meu argumento iria direitinho para Córdoba. Se
em Santa Sofia o visitante ainda hoje se sente um grão de areia na casa
do Senhor, na mesquita andaluz, pelo contrário, devia perder-se. Claro
que o incomoda a enxertia da catedral católica no seu interior. O
incruste é como uma cruz cravada em terra de infiéis. No entanto, é
esta estranheza arrogante que acaba por revelar a altura da construção
islâmica, até aí oculta na harmoniosa monotonia da floresta de arcos em
que assenta. O mesmo Deus era, portanto, diferente, consoante se
adorava em Istambul ou em Córdoba. Para os rumis era grande,
inacessível e omnipotente; já para os muçulmanos andaluzes o seu
aspecto era o de uma luz no interior da floresta de calcário.
Não precisavam os de Córdoba de uma antecâmara do paraíso na sua
casa de oração? Talvez não, porque a tinham ali perto, quase ao alcance
da mão, na Alhambra dos nazarís de Granada. Esta cidadela inacabada é
um pecado.
Tem o arrojo da torre de Babel e a delicadeza dos contos de fadas.
No mundo dos meus sonhos ela ocupa o topo da montanha mais alta. Mas
deixemos as divagações e regressemos ao que importa: aqui e ali, Périplo viaja para Norte sem nele se deter mais do que o estritamente necessário. Porque um dia destes, outro livro completará este.
Passemos das obras encantadas pelo Mediterrâneo às páginas que o
encantam, que a algumas delas também este livro se dedica. O olhar do
viajante raramente é virgem e muito menos é neutro. Marca-o a
intencionalidade da própria viagem, os sentidos e as experiências
porque passou antes, bem como os olhares de terceiros, os que se
descobrem nas leituras que se fazem. Estas, por sua vez, são
influenciadas pelos lugares onde decorrem. A Odisseia não é a
mesma, deleitada num sofá, ou lida junto a um pilar grego em Cirene,
com o Mediterrâneo no horizonte. Ler em viagem sobre os lugares da
própria viagem é uma experiência que recomendo vivamente. Os bons
livros no sítio certo, adquirem as cores, os cheiros e os encantos
desses lugares. Não estranhe, por isso, que, de quando em quando, a
viagem desta narrativa seja a da própria leitura e que a escrita vista
a pele e o olhar do outro.
Ao longo do livro, o leitor encontrará as referências bibliográficas que usei.
Não as reúno no fim, porque este livro não é, de facto, um ensaio e
muito menos aspira à mundividência. Ele foi escrito retirando tempo às
férias e aos fins de semana dos últimos dois anos. Por exemplo, não
inclui qualquer referência a um dos livros que que, seguramente, maior
prazer me deu: o Breviário Mediterrânico,(2) de Predrag
Matvejevitch. O dom deste jugoslavo, dissidente no tempo das
dissidências e dissidente na era do pensamento que se julgou
definitivo, é o do pormenor. O seu Breviário é como uma
gravura de Piranesi ou como uma carta geográfica antiga, de imaginativa
precisão. Abusando de uma imagem usada por Ohran Pamuk, diria que a
escrita de Matvejevitch exige a atenção de uma lupa. Abro o Breviário numa página à sorte e leio:
“Os mediterrânicos não têm todos o mesmo gosto pela
natação. Aos antigos repugnava molharem-se no mar, e sobretudo
proibiam-no às mulheres:
no Mediterrâneo isto passava por um sinal de amor.” (3)
Apesar de vacinado contra as ideias apressadas, sempre associara a
escassez de homens e mulheres nas praias do sul do Mediterrâneo a um
qualquer interdito religioso. Se ele existe, sei-o agora, é-o em
consequência e não por causa. Iluminado, puxo pela memória e lembro-me
de como eram frequentadas as praias do Alentejo e do Norte de Portugal
na minha infância. Também por cá as mulheres iam a banhos de negro e só
molhavam os pés. Périplo perde-se em pequenas histórias e
apontamentos deste tipo, que desfazem ideias feitas e nos ajudam a
descodificar a vida dos outros, olhando para nós próprios. Afinal, os
portugueses são herdeiros das histórias cruzadas deste mar, apesar de
nele pouco terem navegado. Predrag Matvejevitch, listando equívocos e
prevenções, ajuda a compreender porquê:
“O Mediterrâneo não tolera medidas excessivamente
acanhadas. Seria traílo encará-lo sob o aspecto do eurocentrismo, como
um produto puramente latino, romano ou românico, observá-lo do ponto de
vista do pan-helenismo, do pan-arabismo ou do sionismo, julgá-lo de
acordo com este ou aquele particularismo étnico, religioso ou político.
A sua imagem foi muitas vezes deformada por tribunos fanáticos e por
exegetas parciais, por sábios sem convicção e por pregadores sem fé,
por cronistas oficiais e por poetas de circunstância. Estados e
Igrejas, monarcas e prelados, legisladores laicos e religiosos
esforçaram-se por dividir o espaço e os homens. Mas os laços interiores
resistiram às partilhas. O Mediterrâneo é mais do que uma simples
pertença.” (4)
Quem deseje compreender este mundo deve saber que não foram apenas
os deuses que se lançaram ao mar e que a mesma ideia ocorreu às suas
criaturas.
Sem se fazerem rogadas, fizeram meninos e meninas em portos e
enseadas e viajaram sempre para longe, cada vez para mais longe, por
terra e por mar.
Os povos do grande lago são mestiços sem excepção. Não acreditem
quando vos disserem que houve quem preservasse o sangue e apurasse a
raça. Com nenhum povo foi assim porque o Mediterrâneo é o lugar onde a
vida se fez Tempo e este livro é sobre esse casamento feito de festas e
amores, zangas e equívocos.
Talvez Périplo seja, acima de tudo, um livro de viagens no
Tempo. Claro que a actualidade morde, amiúde, a escrita. Estas páginas
têm política e economia, lutas de classes, desavenças tribais e
ingerências, exércitos e petróleo.
Contudo, este livro não é um ensaio sobre política. Quando muito, o
leitor ficará a conhecer o universo de interrogações e referências que
acompanham o meu exercício de responsabilidades enquanto eurodeputado.
Propositadamente, deixei para o fim uma pergunta para a qual não tenho
resposta definitiva: porque se esvaziam, a Norte, as igrejas e as
vocações e se enchem, a Sul e a Oriente, as mesquitas? Apenas intuo que
ela se encontra algures no modo como as diferentes sociedades reagem à
compressão de todos os tempos do Tempo no tempo presente.
Nas cidades deste livro, os últimos modelos das marcas de automóveis rivalizam com o camelo e o burro e o magnífico apelo do muezzlin
disputa as ondas hertzianas aos vídeos da Madona e da Shakira. Não se
fica por aqui a concorrência desleal entre os sinais do futuro e a
perenidade dos passados.
Antinomias deste tipo multiplicam-se à exaustão porque este mundo
entrou em curto-circuito temporal. O véu, por exemplo, regressou em
força; mas as mulheres subverteram a circunstância e rapidamente o
transformaram numa moda. Mais ainda, muitas passaram a sair à rua, a
trabalhar e a conquistar as universidades sem acusação ou suspeita. O
Mediterrâneo é assim: dribla os seus guardiões.
Gosto particularmente do modo como uma socióloga marroquina, Fátima
Mernissi, olha para as diferenças entre o Norte e o Sul do Mediterrâneo:
“A diferença entre nós e o ocidente reside no modo
como consumimos a morte, o passado. Os ocidentais fazem dele uma
sobremesa, nós um prato de resistência. Os ocidentais consomem o
passado como um entretém e um passatempo, para repousarem do stress do
presente. Nós fazemos dele uma profissão, uma vocação e um horizonte.” (5)
Esta diferença de olhar, aliada a um sentimento de superioridade,
cega a perspectiva. A velha Europa dispôs de dois séculos para
concretizar a sua transição para a Modernidade. Esta revolução não foi
propriamente um passeio. Esquecemo-nos facilmente das duas guerras
mundiais que atravessaram o continente. Contudo, os mais idosos ainda
se lembram.
Recordam-se dos que ficaram pelo caminho e têm dificuldade em
acompanhar o mundo, tal como ele hoje se apresenta. Se é assim como os
nossos avós, imaginem como está a ser no Sul do Mediterrâneo, obrigado
a percorrer em cinquenta anos a estrada que fizemos em duzentos. Esta
marcha forçada não perdoa.
Regresso às fotografias do Camilo Azevedo. Selecciono agora as que
mostram lojas nos souks e nos bazares. São quadros de orgulho e aprumo.
É quase um pecado retirar o que quer que seja do seu lugar. Os
homens deste mar tratam as suas lojas com o desvelo que as mulheres
põem no asseio das casas. Rico ou pobre, essa é a regra.
Um fio invisível liga os exercícios de precisão. A minúcia do
comerciante é a mesma do antigo calceteiro de mosaicos em Eféso ou em
Cartago, do carpinteiro dos tectos de madeira da capela palatina de
Palermo, do estucador da Alhambra ou do pintor da mesquita Azul. Este
desvelo apaixonado é ainda o do ourives, o do relojoeiro ou o das
mulheres dos altos planaltos da Anatólia, que juntam a inspiração dos
seus kilins ao rigor dos tapetes. Rico ou pobre, masculino ou feminino,
este mundo tem queda para a filigrana.
Fixo-me agora noutras fotografias. São o exacto oposto das anteriores.
Registam o lastimável estado em que se encontra o espaço público. A
rua e a praça, conquistadas pelo plástico, são o reino do desleixo. Em
Amã, no Cairo ou em Palermo, o lixo ao abandono só varia no grau de
intensidade.
As cidades deste mundo têm montra e traseiras. Porque será? Que
mundo é este que abandona o que é de todos e se esmera no que a cada um
pertence? Arrisco: só pode ser um mundo surpreendido pela vertigem do
futuro.
Este livro também é sobre perguntas – com resposta e sem resposta.
O Mediterrâneo é como os seus mosaicos, espesso e denso. As
fotografias do Camilo Azevedo registam um mundo prisioneiro de
sucessivas camadas de história justapostas. Mas há um outro lado, o das
antecipações futuristas que, em regra, lhe chegam de fora e que modelam
os sonhos. A fotografia que fecha este livro, tirada junto ao bazar de
Istambul, diz mais sobre estes do que mil palavras.
Submetido a uma pressão excessiva, o mosaico quebra-se e dispara
fragmentos de histórias inacabadas em todas as direcções. Comunidades
com séculos de delicada edificação estão a ser expropriadas do mais
precioso dos seus bens, o Tempo. É por isso que os passados se
projectam como lugar de refúgio e reinventam como arma letal. Este
mundo, garanto-vos, tem tudo a seu favor. Mas terá tempo para de novo,
poder?
(1) Apontamento registado no IVº caderno de viagem.
(2) Esgotado, o Breviário foi recentemente reeditado pela Quetzal.
(3) Predrag Matvejevitch, in Breviário Mediterrânico, pág. 82; Quetzal; 1994.
(4) Idem, pág. 20.
(5) Fátima Mernissi, in Le Harém Politique, pág. 29; Editions Complexe; 1992.